Literatura com psicologia

Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski : uma resenha psicológica e filosófica

Este é o segundo livro da literatura russa que leio, e tanto Crime e Castigo quanto A Morte de Ivan Ilitch compartilham algo sensacional: a exposição crua e realista da hipocrisia social. Em particular, Dostoiévski faz isso de forma magistral, levando o leitor para dentro da mente de um criminoso que poderia ser visto como fruto de uma sociedade miserável, mas que, na verdade, é alguém com um certo niilismo, que se julga acima do bem e do mal.

Vamos analisar essa rica obra. Aviso que terão spoilers. Se ainda não leu o livro, sugiro ler este artigo apenas após.

Resumo da Obra

Raskolnikov, após ser forçado a abandonar os estudos devido à sua situação financeira precária, decide assassinar uma penhorista corrupta para obter seu dinheiro. A história se passa em São Petersburgo, durante a segunda metade do século XIX, uma época e lugar onde a pobreza, a prostituição e o alcoolismo eram comuns. Com esse pano de fundo, vamos agora explorar a mente complexa de Raskolnikov e entender as motivações que o levam a cometer o crime.

A partir do momento do assassinato, o leitor acompanha a mente e os delírios de um protagonista que, ao cometer o crime, é acometido por culpa e intensificação de sintomas físicos (como febres, desmaios, delírios), deixando o leitor em dúvida sobre sua sanidade mental. Um personagem complexo, que, apesar de sua frieza assustadora, também é muito humano com alguns desafortunados. No entanto, Rodya, como é chamado pelos íntimos, odeia a humanidade.

Análise Psicológica de Raskolnikov

Dostoiévski é amplamente citado por descrever de forma realista a psique do criminoso, uma mentalidade que parece resistir ao tempo e às diferenças culturais.

Raskolnikov tem uma teoria que o leva a cometer o crime. Segundo ele, o mundo é composto por dois tipos de pessoas: as comuns e as extraordinárias. Ele acredita piamente ser extraordinário, detestando a natureza humana e vendo-a como lamentável e repugnante. Ele se considera quase um super-homem, com permissão para matar. Mesmo assim, percebemos suas dúvidas inconscientes, como no sonho com o cavalo, que é morto por um bando de homens violentos simplesmente porque estava exausto e não conseguia mais caminhar. Podemos interpretar isso como o próprio inconsciente do protagonista mostrando a crueldade do que pretende fazer, mas mesmo horrorizado, ele não desiste.

Ele acaba matando não só a penhorista, que ele julga ser a escória social (uma morte que traria benefícios à sociedade, segundo a teoria do utilitarismo), mas também sua irmã, uma pessoa boa e honesta, que teve o azar de estar no lugar e hora errados. A partir daí, ele decide não ser descoberto, passando por várias subtramas e reviravoltas até que se vê sem saída: suicídio ou se entregar.

Dostoiévski explora o niilismo através de Raskolnikov, que se vê acima das normas morais comuns. No entanto, a sua incapacidade de escapar da culpa sugere uma crítica ao niilismo e uma reafirmação da moralidade universal. Mesmo após aceitar seu castigo, Raskolnikov ainda mantém a mentalidade comum dos criminosos:

Para um criminoso extraordinário, sua grande estupidez não é o crime, e sim ter sido pego.

Rodya se vê como uma espécie diferente da humanidade. Mesmo na prisão, ele olha para seus companheiros presidiários como eles se fossem inferiores, mantendo sua condição de superioridade, insistindo em criar um terrível abismo entre ele e os outros.

O presente era uma inquietação constante, o futuro, um martírio que jamais teria fim. (…) Viver para quê? Que perspectivas tinha? Viver só para existir? Ele estava mil vezes mais disposto a entregar sua existência por uma ideia, uma esperança, até mesmo uma fantasia. A existência somente era pouco, ele queria mais.

Alienação Social

Raskolnikov se coloca como um pária social e de forma contraditória como um ser extraordinário destinado a um grande destino. Evitando o contato com todos, Rodya age de forma fria e apática, como um criminoso calculista e atento aos mínimos detalhes. Embora ele demonstre rara generosidade e pena por certos indivíduos, faz isso de uma posição alienada e irrisória. Sua miséria, coação e baixo status o forçam à depressão, hipocondria, monomania e um comportamento altamente errático e irritado. Esse cenário mental é perfeito para motivar o seu crime e tornar a teoria de ser extraordinário como uma construção viável, lógica.

Até hoje, psicólogos criminais atestam que os criminosos que se veem como infalíveis, como sociopatas, se fixam nas minúcias da questão do crime e não no quadro geral, sentindo que não têm outra alternativa a não ser cometer o crime ou ato destrutivo, como se não conseguissem ver o mal dos seus atos.

O interessante é o contraste entre sua falta de crença na humanidade ou religiosidade, que vemos com a personagem Sonya. Ela se sujeita à prostituição para salvar a família da fome, e mesmo sendo realmente apartada da sociedade, ela ainda mantém a bondade e a humanidade que falta a Rodya. E ela terá um papel decisivo para a mentalidade de Rodya.

Ou mesmo a angulação psicológica que ocorre entre julgador e culpado feita pela figura de Porfiry Petrovich. Com anos de experiência ele percebe habilmente que Raskolnikov é culpado e faz discursos que detalha de forma exata os pensamentos do criminoso. Isso tudo por entender que um criminoso cheio de culpa passa por uma tortura mental que o fará ou confessar ou enlouquecer.

E considerando que o romance se foca mais no crime, fica claro que a autopunição, às vezes, pode ser pior do que qualquer outro castigo infligido por outrem.

Uma Breve Análise Filosófica

Você conhece o que se chama punição de terceiros? Institucionalizado nos sistemas legais há anos, ele é um dos mecanismos que explicam o grau excepcional da cooperação em sociedade. A disposição das pessoas em punir aquelas que mentem, roubam, trapaceiam ou violam normas sociais, mesmo sem terem sido prejudicadas ou se beneficiado pessoalmente, é um comportamento distintamente humano. Poucos animais, até mesmo outros primatas, agem dessa maneira “eu te puno porque você prejudicou alguém”.

Graças a essa cooperação social, a humanidade se torna cada vez menos violenta. E o interessante em Crime e Castigo é como o autor consegue mostrar o pior e o melhor da humanidade. O protagonista é também o antagonista, e o leitor se torna cúmplice do crime, presenciando suas mentiras quando confrontado, suas loucuras em pensamento, e não podendo deletá-lo. Embora o livro se chame Crime e Castigo, ele se concentra absurdamente no crime que somos levados a acobertar, talvez torcendo pela redenção de um criminoso.

Na minha opinião, torcer pela redenção, é também um ato distinto dos humanos, nossa racionalidade sabe de nossas falhas, não podemos aceitá-las, mas desejamos que quem as violem um dia volte ao caminho que julgamos correto.

Conclusão

Em resumo, “Crime e Castigo” continua a ser uma obra-prima atemporal que nos força a confrontar as profundezas da psicologia humana e a questionar nossas próprias concepções de moralidade e justiça. Através de Raskolnikov, Dostoiévski nos lembra que, independentemente de quão extraordinários possamos nos considerar, não podemos escapar das consequências de nossos atos.