Literatura com psicologia

Análise psicológica de “Flores para Algernon”: Temas de Inteligência e Felicidade

Se você já assistiu ao episódio 9 da 12ª temporada dos Simpsons (2001), verá muitos paralelos com o livro “Flores para Algernon” de Daniel Keyes. Neste episódio, Homer Simpson passa por uma cirurgia para aumentar sua inteligência, assim como o protagonista Charlie Gordon no livro. Ambos exploram temas profundos sobre a inteligência, a felicidade e a natureza humana.

Lançado em 1996, o livro conta a história de Charlie, um homem com um QI de 68. Ele trabalha em uma padaria varrendo o chão e, à noite, frequenta aulas de aprendizagem para adultos ministradas por sua amada Alice Kinnian. Ele é doce, gentil e tudo o que ele quer fazer é aprender. Então, quando o Professor Nemur e o Dr. Stauss, cientistas da Universidade Beekman, o abordam e oferecem uma nova operação radical para torná-lo “normal,” Charlie agarra a chance. Daqui em diante, haverá spoilers. Se não quiser lê-los, dá para pular para sessão de Conclusões.

O Lamentável Charlie Gordon

O livro começa com a infantilização do personagem. Antes de realizar a cirurgia, somos apresentados aos relatórios de progresso de Charlie, cheios de erros gramaticais e deduções óbvias, cabendo ao leitor inferir o que Charlie ainda não é capaz de entender devido à sua limitação intelectual. De forma irônica, passamos a sentir pena do personagem principal.

Eu disse a ele que imaginei uma mancha de tinta. Ele balançou a cabeça, então não era bem assim… Fechei os olhos por um longo tempo para fingir e então eu disse que fingi que uma garrafa de tinta derramou em um cartão branco. E foi aí que a ponta do lápis dele quebrou e então nos levantamos e saímos.”

Após a cirurgia, Charilie fica cada vez mais inteligente, mas o aumento exponencial tem o efeito oposto ao desejado: ele começa a perceber todo o isolamento social e familiar a que foi submetido e começa a experimentar vários sentimentos negativos em relação a si próprio com sua ignorância pretérita. Assim, o leitor acompanha o nascimento de um homem inteligente, mas cínico, cruel e esnobe. Tornar-se inteligente não o tornou melhor.

A Despersonalização de Charlie

O experimento gera tanta repulsa na percepção de como Charlie era (agora considerado um gênio) que ele passa a dissociar-se, tanto ao lembrar de seu passado quanto ao viver algumas situações presentes de forma despersonalizada:

“Eu vejo o pequeno Charlie Gordon — quatorze ou quinze anos — olhando para mim através da janela de sua casa, e é duplamente estranho perceber o quão diferente ele era.”

O transtorno de despersonalização/desrealização é um tipo de transtorno dissociativo que consiste em sentimentos recorrentes ou persistentes de distanciamento do próprio corpo ou processos mentais, geralmente com uma sensação de ser um observador externo da própria vida (despersonalização) ou de estar desconectado de um ambiente (desrealização). Este transtorno é quase sempre desencadeado por estresse grave. 

Essa incapacidade de se reconhecer no antigo Charlie pode ser interpretada de forma metafórica como a morte e o nascimento de Charlie. Se antes o antigo Charlie era visto como mocinho, o novo Charlie se torna agora o antagonista: cada vez mais errático em seus comportamentos, arrogante, não mais se reconhecendo naquilo que o antigo Charlie representava, como a inferioridade, a inocência ou ser lido como “idiota”.

A busca pelo passado reprimido

Na minha opinião, a busca pelo passado reprimido é a principal motivação do enredo, mantendo o leitor engajado do início ao fim. À medida que somos introduzidos às lembranças de Charlie, ele revela uma visão frágil de si mesmo, não compreendendo como era motivo de chacota ao longo de sua vida e como sua própria família o via de maneira depreciativa. Essa revelação gera empatia e pena no leitor.

À medida que Charlie se recorda do passado, a dinâmica familiar disfuncional emerge. A rejeição da mãe devido às suas dificuldades intelectuais provoca uma intensa repulsa. A agressividade com que Charlie é tratado por ela, como ele é visto como um fardo familiar e segregado da sociedade, destaca as sombras do arquétipo materno. Minha repulsa pela personagem materna é comparável à que senti com a mãe de “Carrie, a Estranha”, de Stephen King.

O comportamento mais empático do pai em relação à condição do filho contrasta com o da mãe. Entretanto, sua apatia ao lidar com o conflito não o torna exatamente simpático. A irmã, com seu comportamento infantil, tenta se livrar do fardo de ter um irmão “retardado”, promovendo uma grande aversão ao núcleo familiar.

De certa forma, a incapacidade de Charlie de entender o que acontecia ao seu redor antes da cirurgia era uma forma de proteção, que se quebra à medida que sua inteligência aumenta. Essa transformação é abordada de maneira muito eficaz pelo autor.

Minhas conclusões sobre o livro

O Mundo Padronizado e os Desvios da Normalidade

Vivemos em um mundo padronizado, que funciona muito bem para quem está na média. Qualquer desvio da normalidade, seja ele positivo ou negativo, enfrenta problemas adaptativos. Isso é visível na trajetória de Charlie. Antes da cirurgia, ele enfrenta dificuldades devido à sua deficiência intelectual. Após a cirurgia, à medida que sua inteligência aumenta, ele enfrenta novos desafios e conflitos decorrentes de sua nova percepção do mundo e por não mais se encaixar devido a sua inteligência superior. Antes pessoas que antes ele via como “gênios” agora ele os vê como “idiotas”.

Charlie se desenvolve intelectualmente, mas não emocionalmente. Como sua inteligência cresce numa velocidade exponencial, ele não tem tempo para trabalhar suas emoções de forma não lógica, é como se ele fosse um gênio numa mentalidade de uma criança. De forma interessante, esse fenômeno não é alheio à realidade, visto ser comum, pessoas que não passaram por um experimento científico, ou seja, tiveram tempo para desenvolver múltiplas inteligências e mesmo assim continuam sendo deficientes em algumas enquanto alcançam excepcionalidade em outra área.

Isso nos faz concluir que mesmo que houvesse tempo para Charlie amadurecer suas emoções, mesmo assim poderia esbarrar nos mesmos problemas.

O Preço da Excepcionalidade

O preço da excepcionalidade é alto. Embora todos queiramos ser vistos como especiais, a maioria de nós está na média, não no desvio. Charlie, ao se tornar excepcionalmente inteligente, percebe que a inteligência superior também traz isolamento e dificuldades emocionais. Sua jornada nos faz questionar se realmente estamos preparados para pagar o preço da excepcionalidade, seja boa ou ruim. E o autor aborda o tema em uma época que pouco se fala sobre inclusão social.

O Paradoxo da Ignorância

Um dos temas mais profundos de “Flores para Algernon” é o paradoxo da ignorância: muitas vezes, é o desconhecimento que nos torna felizes. Antes da cirurgia, Charlie é feliz de uma forma simples, sem perceber totalmente a extensão de suas limitações. Após a cirurgia, sua crescente inteligência o leva a uma maior consciência de si mesmo e do mundo, trazendo também dor e tristeza. Este paradoxo nos faz refletir sobre a natureza da felicidade e o quanto o conhecimento pode impactar nossa percepção de bem-estar.

Reflexões finais

Flores para Algernon” é uma leitura poderosa que nos faz pensar sobre nossas próprias buscas por aceitação e felicidade em um mundo que valoriza a conformidade. Ele nos lembra que, embora a inteligência e o conhecimento sejam valiosos, eles também vêm com seus próprios desafios e complexidades.